terça-feira, 29 de setembro de 2015

Discussão sobre Base Nacional Curricular deve focar no aluno

Especialistas ouvidos pelo Porvir recomendam que ponto de partida da construção de currículo nacional deve ser o perfil desejável de cidadão que o país quer formar

por Sergio Pompeu  15 de setembro de 2015
Para que serve uma base curricular comum? Para elencar o conteúdo pedagógico que se pretende ensinar ao estudante ou, antes de mais nada, definir o perfil do estudante/cidadão que se pretende formar e só depois definir os meios para se alcançar esse objetivo? Essa é uma discussão antiga no meio educacional, mas voltou à ordem do dia com a iminente publicação pelo Ministério da Educação, na quarta-feira, do texto-base preparado por uma equipe de 116 especialistas sobre a BNC (Base Nacional Comum Curricular), proposta de currículo mínimo nacional que terá força de lei.
Um dos maiores especialistas em políticas públicas do País, Ricardo Paes de Barros – com larga experiência no governo federal, onde ajudou a criar o Bolsa-Família, e hoje economista-chefe do Instituto Ayrton Senna e professor titular da cátedra Instituto Ayrton Senna no Insper –, é partidário da opção de se definir primeiro o perfil do estudante e depois os meios, dando peso aos processos e conhecimentos não-cognitivos. Paes de Barros acredita que não se pode fugir no debate da BNC da necessidade de trabalhar algum tipo de “alfabetização emocional”. “A maioria das pessoas não consegue lidar com emoções por puro desconhecimento, por não saber exatamente o que está sentindo, ser incapaz de discernir, por exemplo, entre raiva e frustração”, diz.
Embora esteja atualmente analisando dezenas de trabalhos a respeito dos conteúdos não-cognitivos – ou de desenvolvimento integral, como eles também são chamados –, Paes de Barros evita eleger algumas dessas capacidades em detrimento de outras. “Isso depende do olhar da pessoa ou da instituição que analisa essa questão”, diz.
O pesquisador cita como exemplo de classificação consistente a da ONG americanaCasel (Collaborative Academic, Social and Emotional Learning), que se dedica ao assunto há mais de duas décadas e produziu um vídeo inspirador a esse respeito para o The Dalai Lama Center for Peace and Education. Ela se divide em cinco características, traduzidas livremente como: autoconhecimento, autocontrole, empatia, competências de relacionamento e tomada de decisões responsáveis.
A maioria das pessoas não consegue lidar com emoções por puro desconhecimento, por não saber exatamente o que está sentindo, ser incapaz de discernir, por exemplo, entre raiva e frustração
Apesar de cauteloso, Paes de Barros vê uma distinção clara entre dois enfoques sobre os componentes do desenvolvimento integral. “Tem um grupo que se detém na capacidade de o estudante superar situações adversas, de perseverar. Dá ênfase à capacidade de encapsular, de certa forma, acontecimentos ruins, não deixando que eles contaminem toda uma trajetória de vida”, diz o economista. “Isso tudo é muito válido. Mas você precisa ressaltar as características positivas do desenvolvimento integral. Se não enfatizar o prazer constante da descoberta, o poder da criatividade, você vai ter um sujeito absolutamente controlado e estável, mas que não vai atingir todo o seu potencial na vida.”
Diretora geral da Associação Cidade Escola Aprendiz, Natacha Costa é uma crítica ácida da estratégia usada pelo MEC, de concentrar a menção aos aspectos do desenvolvimento integral na introdução do texto-base, reservando o corpo dodocumento aos conteúdos puramente cognitivos. “A gente não tem mais que ensinar, por exemplo, fração pela fração em si, mas pelo uso que o aluno vai fazer daquilo na vida dele. Esse é um debate que já está até superado”, diz. “Vamos de novo confundir meios com fins, quando deveríamos usar como ponto de partida o frame do aluno que queremos formar (que inclui criatividade, colaboração, autonomia e uma série de outras características).”
Quando você cria uma lista de conteúdos, a mensagem que está passando para o professor é: este é o meu trabalho, dar essa lista, e não formar indivíduos autônomos, criativos, com participação ativa na sociedade
Natacha também é responsável pelo Centro de Referências em Educação Integral, coordenado pelo Cidade Escola Aprendiz. O centro criou seu próprio documento para estimular a inclusão do desenvolvimento integral na BNC, com cinco matrizes de competências, nas dimensões física, intelectual, social, emocional e simbólica. A maioria delas é bem sucinta, cabe em duas telas de computador. O diagrama tem uma divisão por quatro grandes áreas de conhecimento (Linguagens, Códigos e suas Tecnologias; Ciências da Natureza, Matemática e suas Tecnologias; Ciências Humanas e Suas Tecnologias; e Construção do Conhecimento), cada qual associada a um indicador batizado de Competências e Evidências (para aferir se o aprendizado ocorreu de fato, mas sem o caráter de uma avaliação formal).
No item Construção do Conhecimento, por exemplo, as competências esperadas são: questionar a realidade, utilizando lógica, criatividade, intuição e análise crítica; utilizar diferentes fontes de informação e recursos tecnológicos para construir conhecimentos; desenvolver interesse em aprender e expressar seus conhecimentos; e compreender a importância de organizar seu tempo e seus pertences para estudos e pesquisas.
Por fim, na mesma macro competência Construção do Conhecimento, são consideradas evidências de sucesso: elaborar projetos de pesquisa, com questões pertinentes; realizar pesquisas em diferentes suportes e utilizando diferentes fontes de informação; além de participar interessadamente de atividades formativas dentro e fora da escola.
Como se vê, é um modelo bem diferente do adotado pelo MEC. “A compartimentalização por séries e disciplinas é o oposto do que se está discutindo hoje, contraria uma tendência global. O debate gira muito mais em torno de áreas de conhecimento e competências. Se a Base for fatiada em compartimentos ela será a referência mais retrógrada e ultrapassada que poderia existir”, critica Natacha. “Quando você cria uma lista de conteúdos, a mensagem que está passando para o professor é: este é o meu trabalho, dar essa lista, e não formar indivíduos autônomos, criativos, com participação ativa na sociedade.”
Precisamos educar jovens com sentido ético, não na concepção mais rígida do termo, mas de cidadãos que conheçam seus direitos e conheçam (mais do que isso, que respeitem) os direitos dos outros
Coordenadora de Educação da Unesco (Organização das Nações Unidas para a Educação, Ciência e Cultura), Rebeca Otero é outra defensora de se usar o perfil desejável de aluno como ponto de partida na discussão da BNC. “Para a Unesco, currículos não são meras listas de disciplinas, mas alavancas para trabalhar o conceito de educação para a vida”, diz.
A Unesco, aliás, produziu uma das definições mais sintéticas (e ao mesmo tempo abrangentes) das ferramentas necessárias à chamada educação para a vida, dispostas no relatório preparado pela Comissão Internacional para a Educação no Século 21, presidida pelo ex-ministro da Economia francês Jacques Delors, um dos pais da Comunidade Europeia. “A educação ao longo da vida baseia-­se em quatro pilares: aprender a conhecer, aprender a fazer, aprender a conviver e aprender a ser
Quando saímos do nível conceitual dos quatro pilares e vamos para o chão da escola, ou para o cotidiano dos alunos, Rebeca tem contribuições adicionais a fazer ao debate da BNC (não só da brasileira, mas de qualquer currículo nacional comum). “Precisamos educar jovens com sentido ético, não na concepção mais rígida do termo, mas de cidadãos que conheçam seus direitos e conheçam (mais do que isso, que respeitem) os direitos dos outros.” Entre as características que Rebeca considera inaceitáveis na educação do século 21 estão a omissão quanto a qualquer tipo de discriminação: “de gênero, orientação sexual, em relação a portadores de todo tipo de deficiência e a representantes de minorias”.
Rebeca tem também uma preocupação especial com a formação do espírito crítico dos jovens de hoje. “Isso tem de ser trabalhado no contexto da alfabetização digital. É essencial atualmente aprender onde buscar informação e, principalmente, como ter discernimento, saber quais fontes são ou não confiáveis”, diz. “Porque a informação hoje está em todo lugar, mesmo pessoas sem recursos financeiros têm acesso a ela. Só que a coisa desanda mesmo é na questão do discernimento, algo que falta até a pessoas de alta escolarização. Basta ver as redes sociais, no quanto pessoas supostamente bem formadas caem em contos do vigário, histórias sem nenhuma base disseminadas por fontes sem relevância alguma.”
Acho que devemos falar não do aluno que queremos formar, mas dos alunos, no plural. A sociedade não precisa de gente com competências idênticas, precisa de diversidade. Se ignorarmos as diferenças entre os jovens e quisermos enquadrar todos eles nas mesmas práticas vamos empobrecer todo o processo
Ex-secretário de Educação Continuada do MEC, André Lázaro concorda com os demais entrevistados sobre a necessidade de colocar o perfil do aluno no centro do debate da BNC. Mas faz uma distinção importante, ainda que se resuma a uma letra. “Acho que devemos falar não do aluno que queremos formar, mas dos alunos, no plural. A sociedade não precisa de gente com competências idênticas, precisa de diversidade. Se ignorarmos as diferenças entre os jovens e quisermos enquadrar todos eles nas mesmas práticas vamos empobrecer todo o processo.” Lázaro acha até salutar que a BNC abra caminho para resultados não previstos quando da sua elaboração. “Ela precisa reconhecer o valor do inesperado, daquilo que surge quando o jovem se sente confiante para explorar novos caminhos.”
Embora faça em termos gerais uma defesa sucinta da formação de cidadãos “com espírito republicano e dispostos a trabalhar pelo bem comum” como um objetivo desejável do processo educativo, Lázaro não se furta a detalhar mais a proposta. “É preciso trabalhar, além da diversidade, a sustentabilidade e o uso da tecnologia. O mundo caminha para um desastre ambiental anunciado e não se vê uma reação à altura, algo que se contraponha a esse modelo econômico do querer sempre mais, mais e mais.”

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