Parceiros em ação na alfabetização
Agrupar as crianças é uma estratégia importante na alfabetização, já que a troca de conhecimentos leva à reflexão sobre a escrita e faz todas avançarem
O uso de atividades coletivas na sala de aula começou a ganhar corpo após a educadora argentina Ana Teberosky publicar no início dos anos 1980 o livro Construção de Escritas Através da Interação Grupal, no qual defende que as crianças não chegam ao 1º ano sem saber nada de leitura e escrita, mas com hipóteses sobre a construção dessa linguagem e que essas hipóteses mudam quando elas interagem em situações de escrita. "O desdobramento disso é que a simples troca de ideias entre elas ajuda a desenvolver a compreensão sobre o funcionamento da escrita", diz a pedagoga Cristiane Pelissari, formadora do programa Ler e Escrever, da Secretaria Estadual de Educação de São Paulo, e selecionadora do Prêmio Victor Civita - Educador Nora 10. Desde então, a ideia de organizar grupos nas aulas evoluiu bastante, tornando esse tipo de atividade cada vez mais eficiente para a alfabetização.
Mudanças de paradigmas
O trabalho em grupo pressupõe uma verdadeira mudança de paradigma, não apenas para os alunos mas também para os professores, que têm de rever valores. Na abordagem clássica, a interação entre estudantes costuma ser vista como um fator problemático, com impacto negativo sobre a aprendizagem, pois atrapalha a velha fórmula em que apenas o adulto é dono de um conhecimento, que ele deve transmiti-lo e cabe aos alunos recebê-lo. Na nova abordagem, tudo muda. "Não se aprende a ler e escrever com memorização, mas com reflexão sobre a lógica da linguagem, um processo de construção em que a troca é importante", diz Cristiane.
É preciso construir os chamados agrupamentos produtivos. Os melhores sempre são heterogêneos, pois as diferentes opiniões sobre o sistema de escrita deixam o debate mais rico e as possibilidades de confronto e troca aumentam. Quando o grupo é homogêneo, não há ninguém que desestabilize, e a atividade se torna pouco produtiva. "Na hora de escrever determinada palavra, um aluno pré-silábico pode colocar uma grande quantidade de letras. Se ele está com um colega que também é pré-silábico, fica por isso mesmo. Mas se está com um silábico, esse pode dizer que está errado e falar 'aqui vai o A ou o E e não precisa mais dessas outras letras'. Essa provocação faz o primeiro rever o aspecto quantitativo, enquanto o segundo reforça o que sabe sobre o sistema de escrita ao ter de explicá-lo", diz Ana Cleide.
É preciso planejar o tamanho mais adequado dos grupos de acordo com a atividade, sempre evitando juntar mais de cinco alunos. Quanto maior eles forem, maior a probabilidade de alguém não participar. Para Carolina, o ideal no trabalho de alfabetização são as duplas. NOVA ESCOLA acompanhou o trabalho dela em sala. Na atividade proposta, os alunos tinham feito uma pesquisa sobre sapos, em casa, com a ajuda dos pais. Na classe, cada um apresentou seus resultados, contando o que tinha aprendido. Depois, ela formou duplas. O objetivo era redigir um texto de algumas linhas sobre os bichos. Enquanto um bolava o texto oralmente, o outro deveria escrevê-lo, embora os dois pudessem discutir à vontade tanto o ditado como a forma de redigir.
Gustavo, silábico-alfabético, ditou para Ana Beatriz, alfabética: "A fêmea é maior que o macho". Ela escreveu o "a", um espaço e o "f". Gustavo continuou:
- "M".
- Não, tem outra letra, senão não faz o som de "fe".
Gustavo pensou um pouco.
- Coloca um "e", então.
- Isso, um "e"...
Ana Beatriz completou com "m-i-a, espaço, é", ("A femia é..."). Gustavo acompanhou e continuou soletrando:
- "m-a".
- Ainda falta...
Um colega da dupla ao lado soprou:
- "i-o-r". Os dois se olharam, concordaram e seguiram em frente, completando o "do" ("A femia é maior do...").
- Aí vem "q" com "e".
- Não, está faltando uma letra - reclamou Ana Beatriz.
- Um "a"?
- Não!
- Então não sei...
- Para mim começa com um "q" e depois tem um "u"...
Gustavo escutou, olhou para o papel e disse: - Mas tem um "e". Então ele vem depois do "u".
- Isso! - E Ana escreveu "q-u-e".
Gustavo então soletrou:
- "O, espaço, m-a-x-o".
- Terminou.
No trabalho da dupla houve a intervenção de um integrante de outra, mas a "conversa paralela" foi voltada para a atividade. E os dois discutiram a construção da frase, letra por letra, cada qual com seu conjunto de ideias, assimilando e opondo a opinião do outro de acordo com a própria para produzir um resultado. Vale observar que o objetivo, como dito antes, não é chegar à frase "correta" do ponto de vista ortográfico, mas promover a reflexão sobre como escrever. "O importante é colocar a interação a serviço da reflexão. Não só a serviço do resultado", diz Cristiane.
"O momento mais difícil costuma ser em agosto, quando já há muitos alfabéticos, que passam a cantar as respostas para os outros, que por sua vez não gozam seu momento de aprendizagem", afirma Ana Cleide. E aqui entra uma tarefa muito importante : planejar também atividades diferenciadas para os não-alfabéticos e para os alfabéticos, que precisam avançar e aprender ortografia, por exemplo. As atividades em grupo podem dar a falsa impressão de que o professor terá mais tempo livre, mas, quando todos os paradigmas mudam, pode ser que o trabalho seja mais difícil, principalmente no começo, quando ainda é preciso se adaptar. Você talvez fale menos, mas vai precisar planejar exaustivamente cada atividade e cada agrupamento. A estrutura das aulas deixa de ser construída em cima de seu próprio conhecimento para ser baseada no que os alunos sabem. Isso requer uma avaliação constante e específica de cada um. Por isso, a chave é falar menos e observar mais, prestar atenção na conversa dos estudantes e tomar nota de comportamentos e percepções que serão importantes para reorganizar os grupos se necessário.
Troca de papel
Foto: Gilvan Barreto
É importante entender quando a interação aluno/aluno pode ser mais produtiva que a interação professor/aluno. Enquanto a condução do professor representa uma autoridade, entre si os alunos dialogam de igual para igual. "Se eu digo que alguém está errado, ele bloqueia e não escreve mais. Porém, quando vem do colega, o confronto o faz repensar suas hipóteses", diz Ana Cleide.
Vencidos os desafios, as vantagens do trabalho em grupo aparecem no fim do ano. A turma de Ana Cleide chegou a dezembro com 100% de alfabetizados. A turma de Carolina começou com oito pré-silábicos, dois silábicos, sete silábico-alfabéticos e sete alfabéticos e terminou 2008 com apenas um silábico, um silábico-alfabético e 22 alfabetizados.
O trabalho em grupo ainda desenvolve a socialização e o espírito de cooperação. "Isso é uma lição que as crianças carregam para a vida toda, dentro e fora de sala", ensina Carolina.
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