O rabino que ensinava a ler
Escrito por Hamilton Werneck- Publicado em 21 Janeiro 2015
“Navegar é preciso, viver não é preciso” (Fernando Pessoa). Durante alguns anos, refletindo sobre os ensinamentos recebidos no ensino médio, tive dúvidas sobre a expressão do poeta. Tal seria a necessidade das navegações para Portugal que viver não era o mais importante. Uma luz no caminho me fez entender que, na verdade, o que estava em jogo era a questão da precisão. Navegar exigiria sempre precisão, daí a importância de excelentes navegantes. Viver era uma forma muito mais livre e, por isso, menos precisa.
As escolas primam por desenvolver entre os alunos as análises literais dos textos e procuram desenvolver questões para os alunos demonstrarem tê-los compreendido. Certa feita, uma importante empresa encarregada de elaborar exames de vestibulares usou um texto de Carlos Drummond de Andrade para ser interpretado. À época, um jornalista conseguiu entrevistar o Drummond e espantou-se quando o poeta informou que jamais pensara em responder como corretas as opções que estavam informadas no gabarito das provas. Quer dizer que o autor seria reprovado ao responder a essas questões. Essa mesma empresa, diante de fato tão contundente e quase desmoralizante, tomou uma medida para as demais provas: questões de interpretação de texto deveriam fazer referência a escritos de autores falecidos. Assim, nem no cemitério os jornalistas conseguiriam uma entrevista.
Mas, se fôssemos usar as estratégias de um experiente rabino, teríamos outra visão dos textos, porque os rabinos que se prezam fazem quatro leituras de um mesmo texto. A primeira é uma análise literaldaquilo que foi dito,o peshat, em hebraico – forma típica das usadas pelas nossas escolas. No entanto, o rabino vai mais além. Em um segundo passo, ele analisa o interdito, o remez, e verifica as metáforas que podem existir no texto, extraindo delas maior compreensão. O recôndito ou drashcorresponde a tudo que vem com a reflexão sobre o texto, inclusive as circunstâncias de vida de quem o escreveu, do ambiente e do contexto. Por fim, o rabino centra-se no sod, segredo não dito ou contido no texto, e somente conseguirá retirar ensinamentos dele se conhecer bem o que o autor analisado já escreveu.
Ao assistir a uma palestra do falecido amigo Rubem Alves, ouvi uma crítica às perguntas típicas de uma prova de Língua Portuguesa: O que o autor quis dizer? E Rubem afirmava que o autor não quer dizer, o autor diz! Na verdade, a ótica de Rubem é diferente desse rabino que faz quatro leituras. A questão é que as provas de Língua Portuguesa buscam uma interpretação; já a leitura do rabino, diante das quatro situações de leitura e conforme o conhecimento que se tem do autor, permite outras descobertas mais profundas e até escondidas nos textos. Fica o ensinamento de quem se embrenhou nas interpretações do Talmud: é necessário analisar o “dito, o inter-dito, o recôn-dito e o não dito”.
Em épocas de tantos textos em provas do Exame Nacional do Ensino Médio (Enem) e de divulgação dos resultados do Índice de Desenvolvimento da Educação Básica (Ideb), seria muito bom buscar os ensinamentos do rabino que ensinava a ler.
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