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terça-feira, 21 de abril de 2015

Porque a Diferênça Incomoda Tanto..

POR QUE A DIFERENÇA INCOMODA TANTO?
Escrito por Marisa Faermann Elzirik
POR QUE A DIFERENÇA INCOMODA TANTO?[1]






Algumas questões não se dirigem a respostas, impossíveis num campo tão vasto e complexo, mas permitem exercitar o pensamento e, nesse exercício, transitar por algumas categorias que, penso, poderiam nos ajudar a refletirmos sobre a educação especial e seus atravessamentos com o poder.

Como trabalhar com esse sujeito que é diferente, frente à referência da escola normal, em sua potencialidade?

Como agem, instituição e sociedade, na tentativa de “integrar” o deficiente? Como ser diferente e estar integrado?

Qual é este “não lugar” do feio, do disforme, do diferente, que mascara o lugar do lixo, do depósito, onde se procura colocar o que é preciso ficar escondido, não visto, espelho de mil faces, onde a luz quer ocultar as sombras?

Qual o lugar do professor? Como lidar com a diferença, posto que ela está ali e não vai desaparecer?

Por que a diferença incomoda tanto?

Algumas dessas categorias que gostaria de desenvolver são: a exclusão, a diferença e a formação de subjetividade, atravessadas pelos eixos do poder e do saber.

A exclusão, para Foucault, é muito mais cultural do que social; é uma questão de civilização. Tratando primeiro do louco, depois do prisioneiro – grandes modelos de exclusão –, Foucault mostrou que, na sociedade ocidental, as exclusões são acumuladas, nunca vêm sozinhas, pois constituem uma separação original, um princípio estrutural, que impõe limites.

Desenvolvendo um pouco mais essa idéia, encontramos em Foucault o desejo de descobrir as formas estruturadas da experiência da segregação, da exclusão social, seus modos de transformação em diferentes níveis, no mundo da cultura. Este autor estuda a experiência da loucura, procurando ver se existe uma relação entre essa forma de exclusão e outras formas que se movimentam num mundo dominado pela ciência e por uma filosofia racionalista. Considera que a loucura existe apenas dentro de uma sociedade; “ela não existe fora das formas de sensibilidade que a isolam e das formas de repulsão que a excluem ou a capturam”[3].

Podemos trazer para realidade dos deficientes as mesmas exclusões: do trabalho e da produção econômica, da sexualidade e da reprodução, da linguagem e da palavra e das atividades lúdicas como jogos e festas. Recolhidos, colocados em “lugar seguro”, protegidos, até que ponto se encaram os deficientes como alguém que tem um lugar “dentro” das diferentes dimensões da sociedade, podendo exercer suas potencialidades? Ou, de uma forma natural e preestabelecida, são vistos como incapazes de trabalhar, de ter sua sexualidade e dela usufruírem, de assegurar sua palavra, de ter seu espaço para o lúdico? Não estarão, também eles, e de uma forma mais mascarada, excluídos, separados da estrutura geral da sociedade?

A exclusão está ligada, por Foucault, ao gesto originário de separação sobre o qual se instala uma cultura e que se desenvolve através do tempo, indefinidamente se reproduzindo, por formas as mais diversas do que apenas as da repetição. A exclusão se faz por meio das instituições, dos regulamentos, dos saberes, das técnicas e dos dispositivos.

Alertando para a força dos discursos que são controlados, na sociedade, para conjurar os perigos e também para o papel dos dispositivos, como máquinas de fazer ver e de fazer falar, Foucault define os procedimentos de exclusão que, em nossa cultura, atravessam os discursos: o interdito, o rejeitado, a vontade de verdade, os rituais, a organização do saber em disciplinas, os discursos autorizados, a educação...

Ao analisar o próprio princípio de separação, Foucault explica que, em seu movimento perpétuo de se reconduzir a seu próprio limite, se enraíza a noção do “intolerável”. É esse “intolerável”, que se quer escondido, separado, oculto, que está na base da separação, desde seu início. As técnicas e dispositivos pelos quais esses mecanismos se solidificam e se reconduzem, pela perpétua separação, podem ser vistas em várias das descrições tão bem feitas por Foucault em Vigiar e punir[4] : as disciplinas, o exame, o exercício do poder de normalização.

Sabemos que o poder normaliza e confina, ao mesmo tempo em que constrói e produz efeitos e, também, exclui, porque nele (poder), suas técnicas, seus mecanismos e seus dispositivos, se reproduz o princípio de separação que o institui. Esses dois estratos (o que normaliza e o que produz), um histórico e outro institucional, correm sempre inter-relacionados na análise foucaultiana. Reduzir as dimensões de um problema a um ou outro aspecto pode conduzir a simplificações.

O importante, nos ensina Foucault, o necessário, é atingir ao mesmo tempo a consciência das pessoas e as instituições, simultaneamente, bem ali onde ambas se suportam, na criação de ideologias e em sua cristalização, amparadas em fortes instrumentos de poder que, concomitantemente em que criam, são também mantidos e sustentados pelos mesmos mecanismos.

Partindo da exclusão, é possível ampliar a reflexão para a análise da “diferença”: quem é esse sujeito “estranho” a quem dirijo meu olhar? Como é essa escuta do “diferente”? Qual o cuidado que dispenso a esse “outro”?

A diferença aparece como categoria a ser analisada, mas também como problema a ser enfrentado, na concretude das relações sociais e institucionais. Entendida, a diferença, ora como alteridade, ora como divisão, se coloca como aspecto importante a ser refletido especialmente pelo sujeito que a enfrenta, que está sensibilizado para buscar compreendê-la.

É possível encontrar, na reflexão filosófica, a idéia de que “na procura de uma ordem para o mundo, o predicado (o que é dito sobre uma coisa) foi confundido com o atributo (o que uma coisa tem, uma parte do que a coisa é)”[5]. Para definir algo, buscar saber o que uma coisa é, procuramos delimitá-la em relação a outras coisas, explicitar as diferenças. Essa reflexão também vale para as pessoas. A definição é, portanto, a base do recorte da diferença, que organiza, limita lugares, compõe ordens lógicas, dá significados.

Essa compreensão permite descobrir o lugar da potencialidade por detrás do rótulo, do atributo: nem tudo está determinado! Há possibilidades por detrás dele. Por exemplo, com relação ao rótulo de deficiente, houve uma mudança: hoje se diz portador de deficiência. Há uma mudança na definição: predicado e atributo se transformam nessa delimitação da diferença. Outros sentidos se constroem!

Essa organização lógica e também de significados define, freqüentemente, o lugar do “outro”, seus limites, suas possibilidades.

Gostaria de trabalhar com a ambigüidade que existe nesse “outro”, que não será, necessariamente, sempre o que está fora, o distante, o estranho – separado de mim –, mas “o estranho em mim” – o diferente que me ameaça e com o qual nem sempre quero me defrontar: esse feio, disforme, que eu procuro não ver na outra face do espelho.

Penso que, para entrar na questão da diferença, categoria que vem interessando a filósofos desde Aristóteles, passando por Heidegger, Adorno, Nietzsche, Lyotard, Deleuze, e que faz parte de nosso quotidiano, seria possível utilizar um quadro, uma metáfora, uma imagem, que tivesse plasticidade para dizer, de forma mais concreta, o que pretendo comentar.

Escolhi usar um metálogo, definido por Bateson[6] como uma conversação sobre algo problemático em que os participantes se envolvem na elaboração do tema. É um diálogo que vai além de si mesmo. Retomei, para tanto, uma conversa entabulada há alguns anos com uma aluna, também psicóloga e estudante de mestrado, que, como eu[7], estava interessada na questão da diferença e por que ela incomoda tanto. Conversávamos assim:



“– Sabias que, quando alguém toca uma tecla de piano, as outras também soam?

“– Ah, mas então é assim que tu tocas as pessoas, atinges a elas e tocas em outras coisas que têm vibração.

“– São encontros e desencontros nas diferenças. Coisas minhas e coisas do outro...

“– Como as diferenças têm a ver? Uma soa dentro da outra? São como vibrações: só se ouve o que tu tocas! Não são todas as cordas que vibram, mas todas as que se chamam dó (se esta foi a nota que tocaste!), desde as mais graves até as mais agudas.

“– Como assim? Isso não acontece com os rés, com os fás, com os sols? Com todas as notas?

“– Sim, mas cada uma a seu tempo.

“– De que forma?

“– Aparentemente, uma nota tem que encontrar aquele dedo que a puxa, e as outras vibram a sua volta; mas as outras têm que acompanhar seu movimento, mesmo sem saber a origem dele. E depois, não se sabe qual foi a que vibrou primeiro; a tecla original vai minguando sua vibração; imagino que há um momento em que também é esquecida aquela origem, porque todas vibram.

“– Mas há pouco falávamos que só se ouve o que se toca...

“– Eu não tinha pensado assim... não tinha pensado que uma estava dentro da outra... pensava que estavam conectadas através da vibração, das ondas, e que todas elas estavam dentro do piano; mas o produto dessa vibração fica no ouvido, e alguns sons não se ouvem.

“– Se, na vibração, uma soa dentro da outra, o que acontece quando a origem foi esquecida e todas estão vibrando dentro de todas?

“– Penso que aí alguma faz um esforço de limitação entre o que é possível ouvir e o que não é, e fica para a nossa cogitação saber se a gente vai aceitar essa imposição, essa limitação, ou se vamos considerar esses sons, embora não os ouçamos. Aí a existência fica por parte do sujeito.

“– Mas será que esses sons, por não serem ouvidos, não existem?

“– Isso, provavelmente, é o que nos liga ao primeiro homem e à primeira mulher, porque talvez aquele que tenha tocado o teclado pela primeira vez, aquele dó, não ouviu o mesmo som que nós; deixou perdido para nós, como herança, aquilo que não suportou ou não conseguiu ouvir. E é nisso que se mostrava tão surdo, tão humano, como também somos.

“– Essa imagem me lembra uma antiga música cuja letra dizia assim: ‘Para onde vão as lágrimas, depois que foram derramadas; voltam aos olhos de onde saíram, ou ao coração que as originou?’ Para onde vão as notas que não são ouvidas, que se perdem diante de nossa incapacidade de apreendê-las?

“– Isso nos remete à fala do replicante, do filme ‘Blade Runner’[8], que está morrendo diante do caçador de andróides, sob intensa chuva, e diz assim: ‘Eu vi coisas que vocês, humanos, não compreenderiam... naves de combate em chamas em Orion... Vi raios C brilharem na escuridão de Tanhauser... Todos aqueles momentos ficarão perdidos no tempo... como... lágrimas na chuva [diz chorando, e a chuva se misturando com as lágrimas]... Hora de morrer.’

“– Estamos como a nota dó. Não sabemos como começou nossa conversa. Quem tocou a tecla: tu ou eu? Assim como as vibrações, uma soa dentro da outra. Será que isso não significa que, para sentir a diferença, a gente precisa tocar ou ser tocado? Será que a gente não precisa de alguma forma de entrar em contato?

“– Eu acho que sim! Como pensaste isso?

“– Penso que é insuportável estar o tempo todo se desmanchando. Talvez o mito de Narciso seja ilustrativo: ao se olhar nas águas paradas do lago, o belo rapaz se apaixona por sua imagem, esplendorosa; quer abraçá-la: ao tocar a água, porém, esta se turva, desmanchando a maravilhosa imagem e desesperando assim o amante de si mesmo. Não suportando a destruição, Narciso se atira nas águas, procurando-se, perdido e, com isso, morrendo.

“– Então o Narciso era a imagem ou a pessoa?

“– Nem uma nem outra, e as duas ao mesmo tempo, fantasmas de si mesmo no outro e do outro em si mesmo.

“– O perigo então é a morte? Não se quer enfrentar a turbulência, a ruptura, pelo medo da morte?

“– Talvez o maior medo seja o da vida, de enfrentar o desafio de viver. Viver é aceitar as pequenas e contínuas mortes... da certeza, da possibilidade de saber-se pronto, de ter chegado ao fim e ter que desmanchar e reconstruir, a todo o momento, num movimento quase incansável, a construção da própria vida, tão difícil e sofrida.

“– E isso pode ser ensinado, como se ensina a tocar piano? É possível ensinar a ouvir diferentes sons, matizes, tonalidades?

“– Talvez isso não se possa ensinar, mas se pode promover a capacidade para querer ouvir, para querer ver, ampliando lentes e flexibilizando posturas, permitindo descobrir que é através das pequenas mortes que se criam as possibilidades de celebrar a vida.”



Esse metálogo pode ilustrar, de certa forma, alguns elementos que estão na raiz da questão da diferença:



a constatação da existência do outro (ou outros) e o corte que isso provoca no autoconhecimento e na auto-estima;

o tocar e o ser tocado, como armadilhas da sensibilidade, permitindo escutar uma enorme quantidade de sons, mas não necessariamente ouvi-los, captá-los, integrá-los no “corpus” de conhecimento;

o ver sob diferentes lentes, absorvendo a riqueza e a diversidade do real, em suas contradições e paradoxos;

o abalo narcisista que significa a ruptura da imagem idealizada, e a necessidade de reformulá-la trazendo em seu bojo a vida e a morte, simbólicas formas de nascer e de morrer;

a vibração, o entrar em contato, como a forma de se conectar a uma determinada realidade, aproveitando-a integralmente: sua complexidade, polifonia, multiplicidade.



O que está em jogo é a ruptura com o conceito estático de homem, de mundo, de conhecimento; é a necessidade de cruzar experiências, de compartilhar caminhos, de compreender a complexidade e a diversidade através da abertura de canais para o diferente, o que não é meu, nem igual ao meu, mas por isso mesmo merece respeito. E esse respeito descortina a possibilidade da descoberta de coisas, pessoas, situações – insuspeitáveis, fascinantes. É certo que esse caminho provoca ferimentos pela insegurança, pela quebra das certezas, de normas estáveis. Mas quantas oportunidades se perdem de ampliar o conhecimento pelo apego ao já sabido; quantas possibilidades de criação, de imaginação não levantam vôo pela censura prévia dos proibidos, dos não podes, dos esperados, dos limites inscritos nas regras que tiveram origem em tempos que já se perderam?

Um sistema que se recusa ao real, às modificações que são provocadas por esse real, é um sistema que tende à petrificação, ao não arejamento. De acordo com Morin[9],



“todo o sistema, inclusive o de idéias, tende, com o tempo, a degradar-se, corromper-se, desintegrar-se. Contra essa entropia crescente, ele pode lutar pelo calor, isto é, pela atividade permanente de auto-revisão e auto-reorganização, através do intercâmbio com o mundo exterior e de diálogos com os outros sistemas de idéias”.



Tão fundamental e complicada é a mentalidade, que é possível encontrar, a todo momento, no espaço escolar, os embates e lutas pela conservação e/ou ocupação de espaços, rituais e jogos de poder, continuamente se entrechocando, através de regras, rituais, processos visíveis, em contínuo movimento.

É ainda no espaço escolar que podemos visualizar as múltiplas diferenças postas em cheque, ancoradas nos papéis instituídos, disciplinarizadores, na demarcação de espaços de poder/saber, de regiões de quem fala, nos instrumentos para produzir efeitos sobre corpos e mentes.

Nesse sistema vigilante e punitivo, algo que se observa é o movimento da homogeneização, da estabilização, da constrição, da normatização, do enquadramento. Desde a formação, ainda na família, depois continuando através da escola e permeando todo o sistema social, a palavra de ordem é conformação à norma, ao sistema; é obediência a determinadas regras.

Em estudo[10] recente, pudemos observar que são exigidos de crianças de primeiras séries o silêncio, a obediência, o sentar-se quieto nas classes, o responder ao solicitado (e quase não perguntar). A professora passa boa parte do tempo pedindo silêncio e ordem, restando pouco para o trabalho com atividade de ensino-aprendizagem.

Esse não é um problema puramente do professor ou da escola, ou mesmo do sistema de educação. Talvez ele seja um problema que a afetar toda uma concepção de homem e de mundo, onde o paradoxo está na exigência do antinatural e no ensino do que não acontece. Por exemplo, se enfocamos a formação de professores: onde se encontra, nos currículos e nos cursos, uma preocupação com a diferença, com o movimento, com a desobediência, com a criação, com a imaginação? A preocupação maior está em conteúdos e atitudes a ter sob controle. Isso talvez ocorra porque seriam necessárias rupturas profundas na concepção de ensinar e aprender.

Fazendo uma ponte com o início, penso que essas rupturas precisariam acompanhar as que se fazem hoje em relação à questão sujeito-mundo, ciência-natureza; mudanças precisariam se instalar nos canais de percepção, na vibração das ondas, abrindo um leque de alternativas para o pensamento criativo, disruptor, crítico.

Pensar a diferença é pensar em mudança, e ambas carecem de algo que as suporte, que as conduza e mantenha no sentido de viabilização; esse algo tem a ver com a flexibilidade, entendida por Bateson como “uma potencialidade para mudança que não está sendo utilizada”.

Outro fator essencial é a liberdade, para permitir a distribuição da flexibilidade e as aprendizagens decorrentes desse processo. “Liberdade e flexibilidade com respeito às variáveis mais básicas, podem ser necessárias durante o processo de aprender e criar um sistema novo mediante uma mudança social”, diz Bateson[11].

A mudança no sistema social não se dá sem uma flexibilização do sistema de idéias, que combate aquelas que se tornaram inflexíveis, movidas pela repetição, pela generalização, que se tornaram hábitos de pensar e de conceber o mundo, reiteradas pela freqüência do uso, pela familiaridade, rigidificadas pela aceitação social, sem a necessária inspeção crítica.

Se se considera a flexibilidade “como uma potencialidade que não está sendo utilizada pela mudança”, é possível pensar que nosso sistema social parece preferir controlar diretamente as variáveis expansivas contidas no potencial de flexibilidade; talvez pudéssemos entender aí: por que a diferença incomoda tanto? Se fôssemos capazes de fazer com que todos pudessem usar mais sua liberdade e sua flexibilidade, permitindo um maior conhecimento e utilização suas, talvez tivéssemos experiências excepcionais, como o replicante... “ver naves de combate em chamas em Orion... raios C brilharem na escuridão de Tanhauser”. Talvez nós compreendêssemos, então, outras linguagens, outras vozes, que poderiam passar pelas experiências e que não se perderiam como lágrimas na chuva.

Precisaríamos, certamente, reformular conceitos e incorporar outros, e penso ser de extrema importância a concepção que Bateson[12] desenvolve, depois de vinte anos de estudos sobre a mente, que pode ser assim sintetizada:



“Quisera fazer um elenco de quais me parecem ser as características essenciais mínimas de um sistema que eu possa aceitar como características da mente:

“1) o sistema tem que operar com e sobre;

“2) o sistema tem que consistir em circuitos cerrados ou redes de vias ao longo dos quais se transmitirão as diferenças e as transformações das diferenças;

“3) muitos acontecimentos dentro do sistema têm que ser energizados pelas partes respondentes e não pelo impacto da parte ativante;

“4) o sistema tem que possuir a capacidade de auto-corrigir-se na direção da homeostase e/ou na direção do escape do controle. A autocorreção supõe o ensaio e o erro.”



Ao falar em reformular e incorporar conceitos, estamos certamente falando sobre formação de subjetividade, que seria o último tópico sobre o qual gostaria de discorrer. Acredito que até aqui foi possível observar como todos esses aspectos estão interligados e, também, que a subjetividade está se construindo, em todos e através de todos os mecanismos expostos até aqui, em redes e atravessamentos que, por serem complexos, são tanto mais difíceis de perceber e explicitar, porque se encontram ao mesmo tempo nos discursos e nas práticas, nos costumes e nas leis, nas coisas ditas e não ditas, nos processos visíveis e nos nem sempre tão transparentes.

Talvez fosse interessante desenvolver um pouco esse tópico[13].

À educação cabe a tarefa de produção de “sujeitos” sociais: criação e reprodução. Nada de novo. Querendo ou não, sabemos dessa sua dupla direção. Podemos então perguntar: o que estamos produzindo? Que “sujeitos” estamos construindo? Mas o que entendemos por produção? Que tipo de produção queremos? Como se recolocam nossos papéis de educadores dentro desse momento histórico?

Há menos de dois séculos nos descobrimos históricos. Transcendemos nossos limites humanos através da experiência da vida coletiva. Nem deuses, nem Deus, mas a sociedade em construção por suas próprias mãos.

Esta história não é linear, mas uma história com rupturas, revoluções, descontinuidades. Há muito, pelo menos desde os gregos, o Ocidente pensa a crise e anuncia o fim do mundo. É certo também que alguns momentos históricos foram de euforia, de futuro promissor e ideal, e, em seu contrário, depressões, descrenças generalizadas, niilismo.

Pensemos então a escola tal como a conhecemos hoje. Podemos ver como foi construída e construiu-se numa rede de dispositivos de saber-poder que envolvem toda a vida: dispositivos econômicos, biológicos, históricos, epistemológicos. Foucault chama a isso de governabilidade ou biopoder.

A noção de governabilidade de Foucault introduz novas perspectivas na análise do poder, enfocando especialmente as instituições e o modo como estas conduzem indivíduos e grupos, ligados por diferentes relações de poder, que “estruturam o campo possível de ação dos outros”.

No pensamento foucaultiano, a governabilidade dos outros é produtora de subjetividade, no sentido de que dá forma à ação através da qual o sujeito experimenta a si mesmo. Assim, como campo de possibilidades de ação, as relações de poder nas instituições atuam no plano da indeterminação, da construção dos possíveis. A racionalidade do governo está na escolha de ações entre as várias disponíveis.

A produção de subjetividade se dá através da condição da existência da liberdade, em que o antagonismo com a autoridade tem um papel fundamental. A busca de interesses comuns, a construção de um espaço de criação e de solidariedade, a articulação dos objetivos individuais com os objetivos sociais, podem ser passos para a construção da democracia, fundada nos direitos de cada um para com todos e de todos para com cada um.

Recoloca-se, então, o sujeito de conhecimento no mundo, em seu novo lugar. É preciso humildade diante de seu reconhecimento da ignorância, do não saber. É preciso flexibilidade diante das incertezas e das multiplicidades de possibilidades do saber.

Para o homem, descobrir-se construtor do mundo e de si mesmo torna-se quase insuportável, principalmente para aqueles que gostam da certeza e da verdade. O que fizemos conosco mesmos? Do que somos construídos? Quais foram nossas escolhas? Poderíamos colocar todas essas perguntas no “tempo presente”; porém, como vamos entender “o que estamos fazendo e nos fazendo” sem a compreensão da releitura crítica de nossa história, de nosso passado?

Não estamos na busca de justificativas que expliquem o que nos aconteceu, nem de videntes que formulem nosso futuro, mas da compreensão histórica que abraça várias esferas. Esta se dirige ao mais particular de nosso cotidiano, nossas relações mais imediatas com as pessoas e as coisas, até a história mais universal de uma civilização. Em cada gesto, um jeito, um modo de ser impregnado das mais antigas tradições, bem como das mais recentes, reciclado e reconstruído nos momentos de transformação social por qual tem passado nossa civilização ocidental.

Instituinte e instituída, a escola é um lugar em que as palavras e as ações se inscrevem, desde a desordem, em novas ordens, de saber, de poder, de querer de gostar, de procurar, de sonhar, de sofrer. Práticas divisórias se instalam, bem como paradoxos se colocam e multiplicam, e, no lugar do sentido próprio da escola, que seria o de irradiar um processo de ensino-aprendizagem, significados se esvaziam; e, na perda de parâmetros, outros sentidos se recriam.

Lugar de se encontrar, lugar de ficar, lugar de ter contato, lugar de fruição – para todos, alunos e professores –, o significado da escola se constrói nesse estar junto, muitas vezes mais do que para ensinar e aprender, mais do que para ter e exercer uma função, de trabalhar e estudar. Esse lugar de troca, de convívio, é estruturante e, freqüentemente, assume o lugar de todo o sentido.

Tão importante esse papel social da escola! Centro gerador de relações de poder e de produção de subjetividade! Será que sabemos a profusão de conhecimentos que existem dentro da escola? Ou será que os discursos de fora, “autorizados”, os calam, não os deixam aparecer, dissolvidos e pulverizados num exercício massacrante de um agir ininterrupto, mecanizado, burocratizado?

Será que se conhece, “se ouve” o cotidiano da escola em seus murmúrios, lamentos ou possibilidades de realização, encontro e criação? Será que se conhece a trama de enredamentos que perpassa a escola? Será que se atenta para o sofrimento que existe dentro dela?

Fala-se muito que na escola não se encontra o prazer, que a vida está fora da sala de aula; por todos os lados, o tédio, a rotina, o faz-de-conta que aprende e o faz-de-conta que ensina, o sistema múltiplo das cobranças, das avaliações, reprovações, suspensões, expulsões, exclusões infinitas. Fala-se pouco do sofrimento, da angústia, da culpa, da auto-recriminação, da vontade de saber, do medo de errar, da sensação de impotência, da tortura do tempo, dos prazos que sufocam e se esgotam, matando possibilidades de trabalhar com qualidade. Fala-se pouco do sentimento de desqualificação, ligado ao desprestígio da função do professor em nossa sociedade, ao sentimento da indignidade pelos baixos salários e baixo reconhecimento social, à pouca importância dada à educação, de forma efetiva.

Fala-se pouco do verdadeiro heroísmo que mantém um grande contingente de pessoas trabalhando com a educação, gostando do que faz, apesar de tudo, entusiasmado pela experiência bonita, gratificante, que é observar os resultados de seu trabalho no sorriso iluminado de alguém que aprende.

Talvez um dos grandes problemas a ser pensado, da separação, do esquartejamento entre ciência e prática, entre razão e coração, entre pensamento e sentimento, divorciando a alma do corpo e a razão do coração. Citando Galeano[14]:



“Um sistema de desvínculos: para que os calados não se façam perguntões, para que os opinados não se transformem em opinadores. Para que não se juntem os solitários, nem a alma junte seus pedaços. O sistema divorcia a emoção do pensamento como divorcia o sexo do amor, a vida íntima da vida pública, o passado do presente. Se o passado não tem nada para dizer ao presente, a história pode permanecer adormecida, sem incomodar, no guarda-roupas onde o sistema guarda seus velhos disfarces. O sistema esvazia nossa memória, ou enche a nossa memória de lixo, e assim nos ensina a repetir a história ao invés de fazê-la. As tragédias se repetem como tragédias.”



E as tragédias se repetem nas filas, cabeças atrás de cabeças. Caderno, lápis, borracha, caneta. Silêncio, exercício, prova, cabeça baixa, olhos baixos; psss... Disciplinarização do cotidiano, rotina enfileirada do tédio, escola com saber sem sabor e não podendo saber: do movimento, da alegria, do riso, da busca, do diferente. Porta fechada. Professora repreensão; psss... ouvidos de escuta. Professoras, conversa de participação, de integração. Tragédias da estaticidade, da imobilidade, do silêncio, do obrigar a calar, da imposição da fala, da prova, da avaliação; do prazo, da norma, da lei, de obrigação. Psss... a direção... secretaria... o sistema... grande determinação. Educação robótica. Onde o espaço para pensar? Pois pensar é preciso! Onde o espaço para olhar e inventar? Pois é preciso olhar e inventar para mudar! Onde o espaço para criticar? Pois é preciso expressar o pensamento verdadeiro, escondido, profundo, a crítica, para a ventilação do sistema. Psss... silêncio, não pode falar, não pode gritar, não pode chorar... como pode viver? Precisa trabalhar, precisa ganhar, precisa comer, precisa vestir, criar filho, pagar aluguel e as contas do fim do mês... quem pode desafiar? Tantos “não pode”, asfixias... tantos medos... punições; o melhor é calar, sufocar, conter, fingir que não vê, fingir que não sente, fingir que não se importa... mas como esconder, aprisionar, a ânsia explosiva, rebelde, de estar vivo?... o coração batendo de raiva, de indignação, de admiração, de surpresa? Como fazer parar o coração? Como apagar a vontade? Como driblar o desejo? Forças vivas que habitam os corações de homens e mulheres, desafiam o tempo e a tragédia, todas as injustiças e adversidades, mas iluminam a própria vida. Como disse Galeano[15]:



“Somos um mar de fogueirinhas (...) Cada pessoa brilha com luz própria entre todas as outras. Não existem duas fogueiras iguais. Existem fogueiras grandes e fogueiras pequenas e fogueiras de todas as cores. Existe gente de fogo sereno, que nem percebe o vento, e gente de fogo louco, que enche o ar de chispas. Alguns fogos, fogos bobos, não alumiam nem queimam; mas outros incendeiam a vida com tamanha vontade que é impossível olhar para eles sem pestanejar, e quem chegar perto pega fogo.”



Sabemos como lidar com essas diferenças de fogos, de temperaturas, de intensidades? Sabemos como aproveitar o calor – da dúvida, da curiosidade que queima, que quer saber? Sabemos como lidar com a força do movimento – que não deixa parar, que se ondula, corre, dança e, se movendo, agita e, se agitando, perturba o monótono fluir do quadro, da moldura, do certinho, do parado, do imóvel, do sem vida? Conhecemos nosso próprio fogo? Ou imediatamente o apagamos ao menor sinal de fumaça? O quanto somos vencidos pelo medo, grande aprisionador, grande dispositivo de poder sobre nós, submetidos a infinitos e múltiplos controles dentro da vida social?

Quem sabe não deveríamos exercitar velhas artes da infância, como a teima... teimar em determinado objetivo, perseguir perseverantemente um determinado propósito, apostar corajosamente no que se acredita e, com isso, conseguir fazer pequenos deslocamentos, ou seja, ir onde ninguém está esperando, penetrar em lugares desconhecidos, surpreender e surpreender-se; e também jogar, brincando espontaneamente, ludicamente, prazerosamente, com essas novas transformações... possíveis, concretas, imediatas. Talvez haja condições para que adulto e criança tenham mais coisas em comum do que se supõe normalmente e que esses mundos possam se entrelaçar como anéis recorrentes que devolvam, pelo menos, um pouco a alegria ao mundo tão sombrio em que vivemos, fortalecendo assim os discursos de “dentro”, construídos na força viva da experiência, através do riso, das lágrimas, dos conflitos, do prazer, do sofrimento, da curiosidade, do desafio, capazes de gerar novas verdades.

Mas como lidar com o querer não querendo e o não querendo, querer? Como lidar com as contradições que envolvem e criam a própria escola, centro de contradições dentro de um todo maior que é a sociedade?

Sabemos que não é fácil “ser diferente” no interior das instituições que desejam o amoldamento a uma massa relativamente uniforme, idêntica e identificada, unificada, monocórdica, quase anônima – o que, antes de tudo, é completamente paradoxal com a força do movimento, da contradição, da oposição, da rebeldia, da ânsia pelo novo que constitui a própria vida. Esse conflito entre a tendência homogeneizadora institucional e a rebeldia dos sujeitos traduz um dos mais inquietantes problemas que a escola, como segmento da sociedade, precisa enfrentar em sua base, em sua raiz, pois constitui um caldo fervente de relações que, inevitavelmente, provocam as dissociações entre discursos e práticas.

Trabalhar com o “diferente” é estar também neste “não lugar”, movediço, incerto, refazendo-se e reconstruindo-se a todo o momento, utilizando o desafio da dificuldade como motor para a construção de novos sentidos e realidades desse ensino que é tão “especial”.

Essa pode ser a aventura da diferença!


Referências bibliográficas



BATESON, G. Pasos hacia uma ecologia de la mente : una aproximación revolucionaria a la autocomprensión del hombre. Buenos Aires: Planeta/Carlos Lohlé, 1991.

EIZIRIK, M.; COMERLATO, D. A escola (in)visível: jogos de poder/saber/verdade. Porto Alegre: Ed. da Universidade/UFRGS, 1995.

FOUCAULT, M. La folie n’existe que dans une societé. In: DÉFERT, D.; EWALD, F. Dits et écrits : 1954-1988 – par Michel Foucault. Paris: Gallimard, 1994.

__________. Vigiar e punir : história da violência nas prisões. Petrópolis: Vozes, 1987.

GALEANO, E. O livro dos abraços. Porto Alegre: L&PM, 1991.

MORIN, E. Para sair do século XX. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 1986. 

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